25.3.07

Reportagem: Labirinto de conduções - por Cido Coelho e Camila Galvez

Muitos usuários do sistema de transportes coletivo fazem viagens longas sem sair de dentro da Grande São Paulo. Para muitos, seria mais fácil trabalhar no interior ou no litoral do que dentro da própria cidade onde vivem. O trânsito, os caminhos confusos percorridos pelos coletivos, a falta de linhas de metrô que cortam a cidade, são alguns dos fatores que transformam a vida de quem depende do transporte público num labirinto de conduções.
Muitos tentam se distrair para não ter a sensação de que estão perdendo tempo. Alguns lêem, outros dormem, costuram, conversam, reclamam. O transporte público é uma bomba relógio. Há quem não agüenta a pressão e explode. Brigas são comuns nos coletivos, tanto de usuários entre si como entre motoristas, cobradores e usuários.


Para quem utiliza todos os dias um serviço de má qualidade, é difícil imaginar soluções para resolver o problema. E como não há opção, os trabalhadores continuam se espremendo em latas de sardinha para tentar economizar alguns trocados. Na Semana Nacional do Trânsito, o governo tenta em vão conscientizar para o uso do transporte coletivo. Mas como fazer uso de um sistema que está mais do que falido?
Como é um dia na vida de quem depende de transporte público na Grande São Paulo? Três usuários com diferentes necessidades falam sobre os problemas enfrentados, tais como: preço da tarifa, condições dos veículos, trânsito e as grandes distâncias percorridas. São pessoas que fazem dentro da cidade de São Paulo percursos equivalentes a grandes viagens interestaduais simplesmente porque não tem outra opção para garantir o sustento da família.

60 horas: o caminho nosso de cada dia

Uma média de três horas por dia. Cinco dias por semana. Vinte dias por mês. Em um mês, o técnico químico e estudante do Senai, Carlos Alberto Lanzane, 20 anos, gasta 60 horas dentro de quatro ônibus diferentes. Ou seja, perde dois dias e meio para se locomover de casa para o trabalho e para a escola.
A rotina começa às 4h30. Levantar, tomar banho, café da manhã. Um beijo na avó, com quem mora, e sai de casa às 5h. A mala vai sempre pesada, cheia de livros que viajarão de casa para o trabalho até chegar ao colégio, só a noite. É sempre bom carregar agasalho e guarda-chuva também. O tempo maluco não o deixa esquecer desses itens essenciais para sobreviver a um dia inteiro fora de casa.
A empresa onde Carlos trabalha fica na Cidade Ademar, zona sul, e ele mora na Vila Livieiro, subdistrito do Ipiranga. O trabalho com galvanoplastia (técnica de revestimento de superfícies com metais) não é bem o que gostaria quando fez o curso técnico em Química. Mas é o que tem no momento. Bater cartão tem de ser às sete horas, nem mais nem menos, com o risco de descontar cada minuto de atraso.
Ir sentado no ônibus? É muito difícil, geralmente Carlos só consegue se tiver muita sorte. “É sempre bom ficar perto de gente que tem cara de que vai descer logo”, ensina. Mas como ele sabe disso? “Puro instinto, coisa de quem anda todos os dias de ônibus”, completa.
Chamado de Kaká, como o jogador de futebol da seleção brasileira, o estudante tem uma vida bem diferente do craque de futebol, que provavelmente não vê um ônibus de linha comum há muito tempo. “É, craque de futebol é outra história. Não perde todo esse tempo no busão, não”.
Se ele tivesse um carro, não abriria mão de usá-lo para usar o transporte público. “Não dá! Você demora demais, é tudo contra-mão. Você tem que se deslocar quilômetros a mais porque não tem um ônibus que faz o caminho direto para onde você precisa ir. Com um carro eu chegava no trabalho em 40 minutos, no máximo”, diz.
Depois de uma jornada de trabalho de 10 horas, das quais a maioria Carlos passa de pé, ainda não acabou o dia. O próximo passo é pegar um ônibus que sai da Cidade Ademar e vai até São Bernardo, onde fica o colégio em que faz um curso de Laboratorista. “Tem dias que estou tão cansado que não consigo prestar atenção na aula. Acabo dormindo na carteira”, conta. Sair da escola só às 22h. E ainda tem mais um ônibus até que Carlos possa deitar a cabeça no travesseiro e dormir por quatro horas, para começar tudo outra vez. É assim cinco dias por semana.
Na hora do lazer, Carlos não quer nem pensar em ônibus. “Se não tem carona, se ninguém me leva de carro, não saio. Não dá para andar de ônibus até na hora de se divertir. Senão o passeio vira tortura”, conta.
Um dia na vida do Carlos pode ser um dia na vida do Antônio, do José, do Jonas, do João, da Maria, da Carolina e da Cidinha também. Todo o mundo que depende do transporte público para se locomover pela cidade encontra problemas. Poucos veículos, longos períodos de espera nos pontos, trânsito, calor, super lotação, e um preço que não condiz com o serviço prestado.

80 horas: mergulho diário
Zona Leste, São Matheus. São seis e meia da manhã e o auxiliar de farmácia Gilberto Gomes, 32 anos, pai de Giulia e Ricardo, começa a rotina que se estenderá por toda a semana. Prepara o café e se arruma para resolver os problemas pessoais. Por volta das 11 da manhã, Gilberto precisa fazer o almoço e deixar os filhos sob os cuidados da sogra. Então ele dá início a viagem diária rumo a Vila Santa Catarina, no Jabaquara, Zona Sul da cidade, com destino ao trabalho na farmácia de um hospital particular. Lá permanece das 14 às 22 horas, de domingo a domingo, com uma folga por semana.
"Ando 10 minutos para ir até o ponto. Pego o ônibus por volta do meio dia", explica Gilberto, que parte em direção a Estação Carrão do Metrô. O ônibus demora a chegar e sempre vem lotado. No primeiro trecho do percurso ele gasta 35 minutos até a estação na linha vermelha, que liga a zona leste a zona oeste de São Paulo. O segundo trecho da viagem tem como parada final a Estação Sé, no centro, onde o auxiliar de farmácia faz a transferência para a linha azul do Metrô. A essa altura já se passaram quase duas horas e Gilberto continua de pé. "O Metrô está muito lotado desde que o governo implantou o bilhete único. Não adianta nada dar essa facilidade para o usuário, mas não aumentar a frota de trens” analisa.
Até a outra ponta da linha azul, a Estação Jabaquara, Gilberto gasta mais dez minutos. Ele ainda precisa pegar mais um ônibus para chegar ao trabalho. Mas antes ainda pratica um pouco de exercício caminhando até um ponto de ônibus na avenida Engenheiro George Corbisier. "Ando sempre para esse local porque tenho mais opções de condução. Demoro no máximo 10 minutos até chegar no hospital deste ponto [no Jabaquara] até lá. Mas, tenho de esperar o ônibus na avenida e nem sempre chega no horário certo", conta.
A desorganização dos horários é uma das reclamações comuns para quem anda de transporte coletivo pela cidade. Nos países desenvolvidos do mundo moderno, os passageiros sempre sabem o horário em que poderão tomar os coletivos. Não há problemas de atrasos. Os ônibus têm de fazer os percursos dentro do prazo para atender com qualidade o usuário. São Paulo ainda não conseguiu. "Se os horários fossem mais organizados eu poderia planejar a viagem melhor. Fora que é muito desagradável ver ônibus e lotações chegar no ponto ao mesmo tempo e brigar por passageiros. Eu já vi uma ação de fiscais dentro da lotação que eu estava. Fiquei com medo. O motorista aumentou a velocidade para fugir do carro da Prefeitura. Temi pela minha segurança e por quem estava junto", relembra Gilberto. Uma das vantagens do auxiliar de farmácia é que o horário em que ele se locomove pela cidade não registra altos índices de trânsito.
O carro ficou na garagem quando Gilberto saiu para trabalhar. Mas por que não usar o automóvel? "Teria de ganhar o triplo para cobrir os custos com o combustível", brinca o trabalhador. Gilberto percorre diariamente cerca de 60 quilômetros entre os quatro ônibus e o metrô, o equivalente a uma viagem para dar um mergulho nas águas do Oceano Atlântico em São Vicente, litoral do Estado.

100 horas: a Bahia é aqui
A auxiliar de escritório Suelen Mendes, 20 anos, mora no bairro Nova Bom Sucesso, Zona Norte de Guarulhos, já quase em Arujá. A trabalhadora de uma loja de artigos para caça e pesca no Bairro da Luz, centro da cidade de São Paulo, percorre um trecho de mais de 80 quilômetros por dia para trabalhar das 8 da manhã às 5 da tarde. E pensa que terminou? Após o expediente, ela ainda tenta garantir o futuro num curso Técnico em Informática, na Escola Técnica Estadual Horácio Augusto da Silveira, na zona norte. O percurso percorrido por Suelen é equivalente a ir e voltar do Guarujá, na região do litoral sul paulista. Quando faz as contas, Suelen desanima: ela percorre por mês o equivalente a uma viagem de São Paulo à Salvador (1965 km).
Suelen inicia o percurso com o ônibus intermunicipal 167, Armênia - São Paulo, até chegar na estação Tietê do metrô, de onde vai para o tradicional bairro da Luz. “Geralmente o ônibus vai cheio. Quando chega no meio do caminho que eu consigo sentar. Isso é mais ou menos uma hora depois do início da viagem. Vou praticamente dormindo em pé", brinca a usuária. O trânsito é um grande problema devido ao alto índice de acidentes que acontecem na Via Dutra todos os dias. O percurso total é de uma hora e quarenta e cinco minutos e são mais de 36 quilômetros percorridos.
Para ir a escola depois da rotina puxada de trabalho, ainda é necessária mais uma condução. "O ônibus vai mais lotado que tudo", desabafa Suelen. Na opinião da usuária, a linha precisa de mais carros, pois sofre com os problemas da super lotação. "É humanamente impossível, já viajei pendurada na porta do ônibus. Tenho de passar o dinheiro da condução de mão em mão até chegar ao cobrador e assim descer pela porta da frente”, lamenta.
A insegurança também toma conta dos coletivos. Suelen já foi assaltada duas vezes. "Uma vez dois rapazes armados entraram no ônibus que eu estava. Enquanto um anunciava o assalto na parte da frente do ônibus, o outro estava com uma sacola de lixo tomando as coisas e exigindo que os passageiros jogassem os pertences. Só joguei o meu passe e escondi a mochila. Foi bem no dia em que recebi o pagamento. Tive muita sorte por eles não terem percebido", conta.
Neste trecho a auxiliar de escritório gastou mais uma hora em quase nove quilômetros percorridos até a Vila Guilherme. Depois da aula, ainda são mais 30 quilômetros até chegar em casa, o que equivale a mais uma hora de percurso. "Após a aula tenho que atravessar a Ponte da Vila Guilherme em mais 10 minutos de caminhada até a Marginal Tietê. O ônibus chega às 23 horas e volto para Guarulhos. Exausta, chego em casa por volta da meia noite. Aliás, só tenho casa para dormir, e ainda durmo bem pouco", brinca a trabalhadora.

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ESTA REPORTAGEM FOI ELABORADA POR CIDO COELHO E CAMILA GALVEZ NA UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO.
O texto está publicado no site Recanto das Letras - Código do texto: T316139

1 comment:

Contra - Ataque said...

Cido, muito bom seu blog, sensacional, caso desse transporte escasso e da falta de oportunidades de trabalho nas proximidades da onde eu moro, me faz sentir um exemplo do seu brilhante texto, pois todos os dias, faço o percurso Itaquera - Pinheiros, por dia, perco cerca de 4:20 h do dia só no trânsito e, se fosse de carro, esse tempo caíria de uma hora a menos a até 1:45 h.

Parabéns pelo seu brilhante blog, sempre que posso fico lendo ele.